Perfil

Antônio Poteiro

Invenção, Fôlego e Garbo

Não me parece seguro que a cultura brasileira já tenha produzido realmente algum gênio, mas há quem proponha para Antônio Poteiro esse título.

Pode ou não ser exagero, dependendo do sentido exato em que estejamos usando a palavra.

O certo é que ele um ceramista e pintor surpreendente, um pequeno vulcão barbudo que em vez de fogo expele inventividade e talento, e o criador de sua própria linguagem, coisa não muito frequente entre nós.

Na década de 60, o escultor Willys de Castro cunhou uma frase até hoje muito citada sobre outro criador: “Volpi pinta vôlpis”. Quer dizer: em sua originalidade, o pintor só se podia definir sua obra, o produtor pelo produto, e vice-versa. Há dois anos e pouco, a inconfundível pintura de Poteiro me levou a uma paráfrase: Poteiro pinta poteiros. E assim ficamos entendidos.

É difícil até aplicar-lhe algum rótulo. Não sendo, é claro, um artista erudito, Poteiro tampouco é o que habitualmente chamamos de ‘primitivo’. Além da indesejável contaminação com as idéias de primariedade e precariedade, o termo geralmente designa um tipo de pintura estandartizada, que no caso brasileiro costuma se basear em algumas fórmulas e truques. São riachos nacarados, campos e montanhas floridos, nuvenzinhas que parecem chumaços de algodão e figurinhas espalhadas, tudo bem colorido com tons adocicados, mostrando um mundo quase edênico. Não é isso o que se encontra em Poteiro, com suas farândolas de cores vigorosas, suas figuras incisivas, sua ocupação delirante do espaço e sua visão irônica do mundo, às vezes cáustica, corporificada numa fabulação ininterrupta.

Na falta de melhor, vamos chamá-lo, de espontâneo – embora também não seja o ideal, porque pode sugerir a idéia de (absolutamente falsa) de que sua criação brote ao acaso, com a naturalidade de uma fonte. Isso não existe em arte, a qual é “cosa mentale”, como afirmava Leonardo da Vinci.Até entre os loucos, nasce de um ato da vontade e de uma troca de mensagens consertadas entre o cérebro e a mão. Observou um outro ‘primitivo’ brasileiro, José Antônio da Silva: “Pinto com as mãos e uso o cérebro”; é uma frase absolutamente inteligente.Em minha última conversa com Poteiro, há um mês e pouco, pude constatar a perfeita consciência que ele tem de que está lidando com problemas formais, mais que de conteúdo. Também para ele o verdadeiro desafio não é a historinha que eventualmente conta no quadro, mas sim a maneira de contá-la. O que lhe pode tirar o sono e se este vermelho está muito claro ou muito escuro, e aquele amarelo, no lugar certo. A despeito de sua figuração tosca – fruto de suas mãos rudes de oleiro – é um profissional, que domina, em todos os níveis, seu ofício.

Se por um lado, pois, resultará deliciosa, como sempre, a versão poteiriana dos 500 da História do Brasil – uma idéia brilhante que lhe foi sugerida por seu filho Américo e lhe custou mais de um ano de trabalho ininterrupto -, por outro insisto que o verdadeiro fascínio não está muito no episódio relatado, no assunto (termo que mestre Volpi usava com peculiar desdém, contrapondo-o a pintura), nem mesmo nas eventuais licenças poéticas com que Poteiro costuma marchetar suas narrativas. Está no fenômeno pictórico proposto. O que dá ao artista português/mineiro/goiano (pois nos três cantos andou aprontando das suas) é exatamente o que falta aos ‘primitivos’ de carteirinha: a qualidade plástica, a serviço de uma imaginação borbulhante. Além de inconfundivelmente pessoal, cada tela ou cerâmica é de uma riqueza e vitalidade inesgotáveis.

É que certamente uma força telúrica o anima. (nada mais frase feita do que isso, mas aqui ela é verdadeira e inevitável) . Ao mesmo tempo em que faz com as mãos e a cabeça, sua arte finca raízes num magma que inclui seu próprio inconsciente, o inconsciente coletivo e forças mágicas, para quem nelas acredite. Do barro faz Poteiro- como escreveu Frederico de Morais há mais de vinte anos – “algo vivo”, “entranhado na própria origem do mundo e das coisas “. Por isso suas cerâmicas “parecem algo que está nascendo, se fazendo, um rumor de rios profundos percorrendo a terra por dentro, a vida por dentro, a noite por dentro, um mundo mais próximo do mineral e do vegetal, e no qual o ser humano revela o ‘terror cósmico’ que o envolve”. Uma leitura bonita e sugestiva que se aplica também à pintura – e que se permanece operativa mesmo se hoje em dia o indivíduo Poteiro não me pareça sujeito a grandes dramas. Mas talvez seja até um inspirado, no sentido religioso da palavra. Muitas vezes sonha as peças que depois vai executar – o que também acontecia com outro criador da mesma natureza, o mineiro G.T.O., hoje um pouco esquecido.

Por tudo Poteiro é um grande artista. Transcende as definições com sua personalidade e sua produção tão singulares. Goza de um prestígio imbatível e merecido, faz sucesso de crítica e mercado. Resta falar de seu fôlego invejável. É comum, como se sabe, que os grandes artistas tenham um conluio com os deuses, os quais lhes concedem energia criadora até a idade avançada. O exemplo mais famoso e ilustre é o de Verdi, Compondo Otello aos 74, e Falstaff aos 80 anos; são suas duas obras-primas. As longas barbas brancas de Poteiro talvez o façam parecer mais velho do que é, mas de qualquer maneira já anda exatamente na metade da casa do 70. Vê-lo enfrentar com garbo e competência um empreendimento deste porte, com o qual homenageia uma data tão importante para suas duas pátrias, é para todos nós uma gratificação suplementar. E perceber que sua qualidade não cedeu sob a pressão do tempo é motivo de orgulho para a arte do país que o adotou.

Olívio Tavares de Araújo