ANTÔNIO POTEIRO

Depoimentos

…Quando Glauce Rocha esteve em Goiânia, isso lá pelo ano de 1966, queria levar alguma coisa do lugar. Levei-a ao Mercado Central e lá, numa banca, deparou com as peças em cerâmica de Antônio Poteiro.

Depois de comprar várias peças, ela comentou: “em termos de arte popular, este homem é um gênio”. A minha opinião é a mesma de Glauce Rocha.

Antônio Poteiro é hoje, em Goiás e em todo Brasil, um ceramista e um pintor de grande importância. Desde que começou a trabalhar sua atitude e compromisso com a arte levaram-no a descobrir uma outra existência dentro de sua existência simples, de homem ligado às coisas da natureza e do espírito.

Há muitos anos Antônio Poteiro vem acentuando, com precisão, sua temática: figuras religiosas, lendas, folclore; um lirismo místico, sendo afinal, um pesquisador do seu próprio mundo, fantástico e onírico, onde as figuras e as combinações do espaço atingem a um nível de intensa fantasia. E sua obra cresce, por isso mesmo, em autenticidade e dimensão. …Aí estão os trabalhos de um artista puro. Autêntico. Sem rupturas artificiais ou forçadas. E aí está também o sentido de sua obra: fruto de intenso trabalho, do suor da pesquisa, e onde podemos repousar nossos olhos e sonhar.

Poteiro alcança hoje uma unidade ao nível de construção e composição, permanecendo, contudo, fiel à pureza original da expressão visual. E, assim naturalmente, com muita simplicidade, ele aparece com sua figura bíblica, sua barba de Papai-Noel verdadeiro, para ficar no cenário das artes brasileiras como um dos bons.

De todas as manifestações referidas, não tenho dúvida de que a presença entre nós de um generoso conjunto de obras de Poteiro terá sido a mais significativa. Digo isto porque sua mostra nos entrega, límpida e intocada, a força de uma linguagem que é exemplar ou seja, transfere até nossos olhos sinais de vida, através dos meios mais adequados, sem escamoteá-los com embelezamentos, fórmulas, macetes, vontade de ser o que não é,.
…Eu o conheci há um ano e pouco atrás, cercado de trabalho nos arredores de Goiânia, falando admirado de seu crescente sucesso no cenário artístico brasileiro (já tivera obras expostas na Bienal Nacional de São Paulo e acabara de receber o prêmio maior no salão organizado pela Caixa Econômica de Goiás). Tudo isto sem perder um pingo da simplicidade que ainda nos pode maravilhar e que transfere intacta para as pinturas e cerâmicas produzidas quase aos borbotões, como um fluxo interminável de imagens a exorcizar pela passagem do interior ao exterior.

A individual de Poteiro no SESC da Tijuca, em 1978, já dava para entusiasmar. A de agora, porém, mais que isto, lava a nossa alma, explode diante de nós com uma força irresistível. E quem tiver a sorte de visitá-la com o artista ao lado (coisa que no geral é perturbador, pelos malabarismos de concencimento a que se dedica o expositor), sairá dali siderado. Pois Poteiro é sobre tudo um contador de histórias -cotidiano e mágico, malicioso e respeitoso transfigurador de vivências pessoais, passadas ardorosamente para a sua obra. Com voz baixa, sorriso doce e matreiro, ele irá falando do que está por trás ou por dentro, no espírito dessas cerâmicas; o Cristo quadrado, porque se deixa sempre crucificar, a lavadeira Maria Jiló, com uma trouxa que é também coroa; Adão e Eva sentados sobre cobras e pombas, o Paraíso lá embaixo; Salomão partindo ao meio o menino, a égua voadora, o parto encravado,etc…..

..De certo modo, é um mistério como algumas pessoas conseguem continuar crianças. Segurar dentro de si as fantasias e a capacidade de criar, que só acontece na infância, antes que a socialização vacine um, irretornavelmente, contra este “mal”. E Poteiro sonha as suas telas, soluciona o espaço, as cores e as figuras, como só uma criança consegue, antes dos dez anos de idade. Pintura poderosa, abençoadamente bela.

..Com Poteiro; tudo é tão poeticamente rústico e instinto puro que não há como não se render á sua punjança. Arte ainda é sensibilidade. È isso o que nos transmitem os trabalhos de Poteiro -um homem rude e simples, mas um artista de uma grande e espontânea força criativa.

…Ponteiro com alegria própria do homem elementar, vai amontoando formas imprevisíveis de barro, moldando detalhes para o surpreendente panorama de sua inspiração. Um épico, sobretudo, reescrevendo no barro a história do homem. Do visor no forno lê acompanha o cozimento e, como uma fera, percebe intuitivamente a hora da alegria ou do perigo. Com o Criador ansioso de suas fornadas, cuja resistência vai depender muito do acaso e do livre arbítrio, assim Poteiro olha o barro com o devido respeito, e o fogo ainda mais, como se estas forças da natureza estivessem a competir com sua sabedoria, e apesar de manipuladas esboçassem uma misteriosa rebeldia. A pintura ostentando texturas de um magnetismo tátil.

Se há um exemplo de criatividade sadia e prolífera na arte brasileira de hoje, esse exemplo é Antônio Batista de Souza, o Antônio Poteiro de Goiânia.
…É impossível dizer qual dos dois é mais inventivo, se o ceramista ou o pintor. Suas cerâmicas não se parecem com nada conhecido, tanto pela concepção como pela forma em que se misturam o plástico e o narrativo, ingenuidade e a irreverência, numa profisão de imagens que parecem brotar do fundo da terra aos borbotões.

Na pintura, essa força telírica, sujeita a bidimensionalidade, irradia-se em ritmos horizontais ou circulares na repetição das figuras e dos gestos.E tudo tem um sentido ligado à história do povo, suas aflições e seus sonhos de felicidade. Mas esse sentido de justiça e solidariedade está sempre envolto por um humor desabusado, que é o troco de Poteiro, artista popular, à suspeita respeitabilidade do que mandam no mundo.

..A série de seus trabalhos na Galeria Bonino, pode conduzir o espectador a supor que Poteiro é um hábil manuseador de um imaginário popular, rico de sugestões religiosas.Isto é só aparência. Atrás desse universo de encanto, há o perspicaz e quase racionalista Poteiro. Sua incursão por esses temas está marcada por joviais fábulas pessoais, carregada de um erotismo cheio de pureza, anedotas visuais e picardia.

Conheci Antonio Poteiro em janeiro de 1976. Meio calvo, testa expressiva, cabelos longos, em desalinho, barba grande e branca, tem um ar de ermitão ou de profeta. Vi seus trabalhos, pela primeira vez, no início de uma noite chuvosa, à luz de lamparina. As circunstancias do encontro, e a própria figura estranha do artista, reforçaram em mim a impressão inicial de que sua obra se liga, através do barro, à entranha da noite e do tempo. Vem de regiões profundas do ser, de tempos imemoriais que o próprio artista desconhece. …
É fácil perceber que Antônio Poteiro não é nenhum primitivo, tampouco um artista ingênuo. Poteiro sabe das coisas, vê o que está ocorrendo, toma partido, não recebe passivamente tudo o que lê, a Bíblia por exemplo, questiona o mito da pureza dos “primitivos”, é debochado, sacana, faz blagues, vai em frente sem qualquer repressão, cada vez mais criativo e ousado.

…Quais são as características formais da cerâmica e da pintura de Antonio Poteiro? Antes de tudo, a movimentação constante. A terra é redonda e, como diz a Bíblia, Deus fez o homem do barro, e o fez anda com seu sopro. Antonio Poteiro cria histórias no barro, cria narrativas circulares. Suas narrativas circundam a superfície do vaso, dão a volta, é como se não tivessem um ponto de partida ou chegada. São histórias de homens, animais e santos, histórias que ele recolhe na rua, na Bíblia, nos seus sonhos. Histórias de sempre, milenares, que na imaginação popular se repetem com pequenos acréscimos locais. Da mesma maneira como na volta do tempo. Ressurgem, em sua cerâmica, gotismos e romancismos. A forma puxando o tema ou vice versa, pois que estes medievalismos são também escatologias, demonologias.

Mesmo na escolha dos temas de sua pintura, esta movimentação incessante, em círculos, persiste: cirandas, cavalhadas, carnaval, futebol, fogaréus, reisados. O mundo não pára, circula sempre.
… Este mundo que Poteiro constrói em seus quadros e cerâmicas é rigorosamente lógico, a começar por sua simetria. Nele temos o céu e a terra, o alto e o baixo, a esquerda e a direita, o dentro e o fora, Deus e o diabo, o bem e o mal, o leve e o pesado. São vários níveis, planos andares. Há o mundo de dentro (Poteiro põe um presépio dentro de um chapéu de couro nordestino, imagem que lembra uma nave ou gruta) e o de fora. Há um mundo subterrâneo: grutas e ocos que começam a surgir em suas cerâmicas mais recentes, assim como existe um mundo de animais rastejantes e lentos( jacarés, tartarugas) e o mundo aquático- sob as águas, os peixes, sobre as águas o barco com carrancas zoomórficas levando pescadores que sustentam uma enorme tartaruga, que por sua vez sustenta Nossa Senhora Aparecida , com seu grande manto protetor. E existe o mundo aéreo, habitado por santos e pássaros.

Antonio Poteiro tem uma das carreiras mais fulminantes da arte brasileira. De simples artesão de potes a ceramista dos mais criativos do País, foi levado à pintura por sugestão de Siron Franco. Na penúltima bienal de São Paulo foi um dos destaques indiscutíveis da esplendida sala especial de Arte Incomum e, em 1982, como convidado especial, recebeu o grande prêmio do Salão Nacional de Arte de Belo Horizonte. Em dezembro último na Galeria Bonino, realizou uma das mais belas exposições de 1983; reunindo cerâmica e pintura, integralmente vendida. Guardando todos os seus hábitos simples de vestir, no comer, e no residir – já esteve entretanto visitando, também como convidado, o México, a Alemanha e Portugal..
…Raramente faço apresentações em catálogos de exposições. Abri uma exceção para Poteiro porque eu o considero gênio, como os artistas GTO, José Antônio da Silva e Fernando Diniz. Aliás, o artista reagiu ao adjetivo dizendo – “o que eu sou é genioso, nada mais que isso”.
Diante de extraordinária criatividade e da originalidade da obra desses artistas, desses “criadores virgens”, como dirigia Mário Pedrosa, conceitos como os de arte popular ou primitiva, quando postas em confronto com o de arte erudita, perdem o sentido. Eles são artistas e ponto final.

..Antônio Ponteiro é um desses fenômenos da arte espontânea brasileira. Vivia de fazer seus potes de barro numa olaria primitiva. Em 1977, vimos suas primeiras pinturas na Universidade de Cuiabá. O convite foi inevitável e, naquele mesmo ano, Poteiro estava na sala da arte não-catalogada da Bienal da São Paulo. Os potes são compulsivos, formam histórias incríveis, escritas e inscritas em suas superfícies, em relevo tátil e sensual. Sua pintura é hoje a melhor do país entre os naifes.

Nunca escondi que tenho contra os artistas ditos “primitivos” ou “ingênuos” o que se pode, legitimamente, chamar de parti-pris. Não é a mesma coisa que um preconceito irracional, e sim uma tomada de posição que resulta de determinados princípios e vivências. Apesar disso, não hesito em sair, de lança em riste, e desfraldando todas as bandeiras, para proclamar aqui de público meu entusiasmo por Antônio Poteiro, e minha convicção de que estamos diante de um fascinante e poderoso criador.

…Não sei bem qual o segredo do sucesso, a esta altura universal, de Antônio Poteiro. A crítica e os colegas exaltam seu trabalho – enquanto o mercado o disputa. Entretanto, seu desenho não é bonitinho, como os dos falsos primitivos, e sim canhestro, rude como sua mão de ex-oleiro. Seu colorido não borboleteia e torno do bom gosto, mas prima pela corajosa harmonização dos imprevistos. Sua temática não é digestiva, como flores e faunas tropicais, edênicos riachos, casinholas decorativas e montanhas onduladas como seios de ninfetas. É uma temática séria, social, às vezes metafísica. E apesar disso tudo, Poteiro é um sucesso até com os leigos. Só posso imaginar, feliz, que as pessoas, todas elas, são realmente sensíveis quando se encontram diante de algo que é forte, novo e honesto. Poteiro-artista traz o vigor do ser humano Poteiro, este pícaro que poderia ter sido inventado por Fernando Sabino nos chapadões de Minas e Goiás, este diabrete barbudo que consegue visualizar e externar novos e próprios universos.

…Tudo isso, na verdade, serviu para ir adubando aquilo que hoje reconhecemos ser seu talento – se não mais. O mistério em Poteiro é tão grande, e sua força tão inexplicável dentro de critérios puramente racionais, que o crítico Frederico Morais, há pouco mais de um ano, usou a palavra “gênio” a seu respeito. Frederico nada tem de leviano. Deixou-se evidentemente arrebatar pelo inesgotável manancial de invenção formal que há na pintura e na cerâmica de Poteiro, a serviço de um mundo interior profuso e borbulhante. Pois, embora não seja um filósofo, e sim um simples criador de situações visuais, Poteiro evidentemente pensa. Sua cosmovisão é irônica, irreverente, às vezes cáustica, mas também feliz, bem-humorada e de pazes feitas com a vida. Com longas barbas brancas que o fazem parecer ainda mais velho, Antônio Poteiro tem algo de profeta – mas também de um diabrete ou gnomo que fabrica seu universo plástico movimentado e excitante.

A impressão que nos transmitem as pinturas e a cerâmica de Antônio Poteiro é a de que foram extraídos do cerne da vida, transfigurados em arte por um impulso criador ao mesmo tempo ingênuo e requintado. Poteiro, ele mesmo uma pessoa simples, sem maiores contatos com o mundo livresco e os meados muitas vezes estéreis do racionalismo, não tem plena consciência do porquê e do que faz – como um pintor naif autêntico, libera impulsos ora nos volumes, em sua cerâmica de inspiração mítica, ora através das cores e da composição de pinturas que, apesar de

ingênuas, relevam, paradoxalmente, consciência do metiér, o que já autorizou a alguns críticos negar-lhe a filiação à vertente primitivista da pintura do Brasil.
Rotular, classificar em exegeses palavrosas uma compulsão criadora que é verdadeira, porque autêntica, não resulta em nada proveitoso. Importa é saber de sua fabulação rica, sua visão do mundo, a multiplicidade abundante de sua invenção formal, manifestas tanto em sua cerâmica quanto na pintura, que ele descobriu há pouco mais de dez anos, descobrindo subitamente em sua mente uma vocação pictórica impulsiva e profundamente entranhada nas raízes das vivências populares. Como pintor ou como ceramista, Antônio Poteiro tem sempre um universo muito pessoal, recriado por uma imaginação ligada mais ao inconsciente do que ao mundo racional, onde impressiona a jovialidade de uma linguagem picaresca, sardônica, alegre mesmo, de alguém que sempre enfrentou sem máscaras os ásperos fatos do viver.

Um artista integral, na força ao mesmo tempo ingênua e original de seu recado plástico, Antônio Poteiro é um inspirado poeta das cores e do barro, habitante de um manancial criador simples e enigmático, sereno e verdadeiro, como tudo o que vem da intocada pureza das coisas do povo.

O que se torna impressionante na obra de Antônio Poteiro é que todas as figuras que ele modela no barro ou registra nas telas parecem extraídas de um universo contínuo, onde estariam atreladas a uma espécie de roda da vida sem início nem fim. Não há ponto de partida para as suas figura as em barro. Ele começa com os grandes animais na base e a seguir intercala homens e anjos, mas não se trata jamais de uma pirâmide hierárquica. Simplesmente são categorias colocadas em seus lugares no universo e que pertencem a um ritmo que não é só a fantasia do artista. Estão naquelas divisões porque assim devem existir.

Ele não é um ingênuo: ao contrário, as suas formas podem servir para um amplo leque de imagens e ele sabe resolver as suas fantasias com recursos de grande sabedoria popular…